Inquérito sobre morte de 17 pessoas em bairro de Manaus inocenta PMs
Brasilpor Fabiano Maisonnave | Folhapress
Na mais violenta ação policial registrada no país em 2019, a PM do Amazonas matou 17 pessoas durante incursão contra o narcotráfico em Manaus, na noite de 29 de outubro. Cerca de um mês depois, o inquérito da Polícia Civil sobre caso não identificou indícios de dolo homicida e concluiu que os policiais agiram no “estrito cumprimento do dever legal”.
As mortes ocorreram no bairro Crespo em Manaus, em área com casas de palafita erguidas sobre um igarapé de águas poluídas e cobertas de lixo. Por volta das 22h, integrantes da facção Família do Norte (FDN) chegaram armados para tomar o ponto de venda do Comando Vermelho (CV).
Acionada, a PM chegou em seguida ao bairro. No suposto confronto, nenhum policial se feriu e ninguém foi preso. Todos os corpos foram retirados antes da chegada da polícia e levados a hospitais. Entre os mortos estava Uelinton do Nascimento da Silva Junior, 14, morador do bairro e sem antecedentes criminais.
Depois de semanas de negociação, uma testemunha da ação concordou em falar com a reportagem, sob a condição do anonimato. Ela afirma que presenciou a execução de um integrante da FDN e viu o adolescente algemado e ainda vivo. “[Os policiais] repetiram várias vezes: a ordem é pra matar, a ordem é pra matar, a ordem é pra matar. Então fizeram. Mataram. Ali aconteceu um massacre naquela noite, massacre”, afirma a testemunha.
Em seu relato, ela diz que um dos integrantes da facção foi encontrado embaixo de uma casa e rendido. “Quando deram tiro na perna dele, estava de joelhos. Já estava dominado, não estava mais com arma, nada.” Depois do tiro na perna, o homem teria corrido para dentro de uma casa próxima. “Aí botaram ele pra fora e mataram na nossa frente.” Questionada sobre onde foram os tiros, a testemunha apontou uma das mãos para o peito.
Antes de morrer, o homem teria entregue uma chave de ignição aos policiais. Hora depois, um PM pegou uma rede de um dos moradores para cobrir o corpo. A descrição da execução coincide com a autópsia do corpo de Michel dos Santos Cardoso, 27, incluído no inquérito, obtido pela reportagem e ao qual a testemunha não teve acesso. O exame mostra quatro tiros: um no joelho esquerdo, um no tornozelo direito e dois no tórax.
Não foi encontrado vestígio de pólvora na mão de Cardoso, que tinha passagens por furto, posse de droga e narcotráfico. Nenhum outro dos 17 mortos foi baleado na perna. Outra coincidência entre o testemunho e o inquérito é a apreensão da chave de ignição, que seria de um carro roubado usado para transportar os membros da FDN. A testemunha não presenciou outras mortes, mas afirma que os policiais levaram alguns homens a um casebre do bairro. Dentro, teriam sido agredidos e assassinados.
Um deles seria Silva Junior. A testemunha diz que estava comendo quando começou a confusão. Ueliton não estava armado. “Ele estava com um espeto de churrasco na mão e um copo de farofa pequeno. Na hora que ele viu, ele correu. Qualquer um que vê tiro, corre. Até eu, se vir um tiro, corro. Eu vi quando ele correu.” Ela voltou a ver o adolescente vivo e dominado pela polícia, junto com outros detidos em um casebre. “Foi jogado lá de cima da laje, algemado. Aí botaram ele de joelho, começaram a falar um monte de palavrão e botaram pra dentro da casa. Ficaram maltratando eles, eles gritavam, ficavam pedindo socorro, que não matassem eles, e o tiro comendo.”
A testemunha diz que não prestou depoimento à polícia por medo de represálias. “Não confio em nenhum dos dois [polícia e facção criminosa]. Só confio em Deus. Só que eu penso o seguinte: a verdade tem de vir à tona.” Silva Junior é o único morador do bairro morto pela polícia e o único sem antecedentes criminais. Ele foi morto por um tiro, que atingiu o coração e o fígado. O exame do seu corpo detectou vestígio de pólvora na mão direita. No dia seguinte à morte, sua mãe, Rosimar de Araújo, 45, negou que o filho participasse de facção e que portasse arma, mas admitiu que ele era usuário de maconha.
Em entrevista a uma rádio local no dia 19 de dezembro, o prefeito de Manaus, Arthur Virgílio Neto (PSDB), acusou a PM de ter promovido um massacre no Crespo, mas não apresentou provas. Procurado pela reportagem, ele não respondeu ao pedido para detalhar a acusação. Nos documentos anexados ao inquérito, foram arrolados antecedentes criminais de 16 dos homens mortos pela polícia e de 11 dos policiais militares que participaram da ação. No exame para detectar vestígios de pólvora, o resultado foi positivo para 10 mortos e 6 PMs. Em 14 policiais, não havia fragmentos de chumbo.
Segundo o inquérito, sob responsabilidade da Unidade de Apuração de Atos Infracionais da Polícia Civil do Amazonas (Uaip) e do Departamento de Repressão ao Crime Organizado (DRCO), os 17 mortos pertenciam à FDN e participaram da ação fortemente armados contra a facção rival. “Contudo não contavam com a intervenção policial. Efetuaram disparos de arma de fogo contra equipe policial, e esses revidaram a injusta agressão e atingiram as vítimas. E esses, apesar de serem socorridos e levados para as unidades hospitalares próximas, não resistiram ao trauma ocasionado pelos disparos e vieram a óbito.”
Ninguém foi indiciado. O inquérito, assinado em 3 de dezembro e enviado à Justiça, conclui “que não vislumbrou nos referidos autos indícios mínimos de dolo homicida na conduta praticada por parte dos agentes estatal [sic]”.O inquérito está sob a análise do Ministério Público Estadual, que tem um procedimento administrativo na Promotoria Especializada no Controle Externo da Atividade Policial (Proceap), sob a responsabilidade do promotor João Gaspar.
A reportagem enviou perguntas a um dos delegados responsáveis pelo inquérito, mas a resposta veio por meio da assessoria de imprensa da Secretaria de Segurança Pública, comandada desde o início de 2019 pelo coronel da PM Louismar Bonates.
Com relação a Silva Junior, a resposta, enviada, por escrito, descartou adulteração no exame para detectar pólvora e afirmou que o adolescente tinha ligação com o crime. Sobre a retirada dos corpos, a secretaria afirmou: “Houve o tiroteio, e os feridos foram levados para unidades de saúde da capital amazonense para receberem o atendimento emergencial. A dinâmica da ocorrência, que se estendeu por vários becos, repletos de moradores, prejudicou o isolamento do local do crime.”
“É importante ressaltar que outros elementos probatórios foram utilizados pelo inquérito, como a perícia nas armas, a necropsia nos corpos, e os testemunhos, entre outros.”