Exército se nega a dar explicações sobre uso de software espião investigado pela PF
BrasilO Exército se negou a dar explicações sobre a compra de softwares de inteligência com dinheiro do GIF (Gabinete da Intervenção Federal no Rio de Janeiro) e a finalidade do uso dessas ferramentas.
Um dos programas adquirido é o First Mile, que consegue indicar a geolocalização de celulares e cuja suposta utilização ilegal pela Abin (Agência Brasileira de Inteligência) é investigada pela Polícia Federal na operação Última Milha.
A Folha questionou a Força por duas vezes. A primeira, ainda na quinta (19), antes de a PF fazer buscas, prender oficiais e afastar servidores da Abin, entre eles o secretário de planejamento de gestão, Paulo Maurício Fortunato, número três na atual direção da agência.
A reportagem perguntou quais ferramentas de inteligência a Força recebeu por meio da Intervenção do Rio, mas não houve resposta.
Na sexta, após a PF expor o uso ilegal de softwares de inteligência, o Exército foi novamente procurado. Dessa vez, questionado especificamente se havia comprado o First Mile, e sobre seu uso.
“O Centro de Comunicação Social do Exército informa que, em função de previsão legal (Lei n.º 12.527 de 18 de novembro de 2011, em seu artigo 23, incisos V e VIII) não poderá atender à solicitação apresentada”, respondeu.
A previsão legal citada na manifestação é referente à LAI (Lei de Acesso à Informação), aprovada em 2011 para regulamentar o direito constitucional de acesso a informações públicas.
Os dois incisos apontados pelo Exército dizem respeito a casos em que há previsão para classificações de informações como sigilosas ou reservadas.
Um deles estabelece possibilidade de sigilo em casos em que a publicidade possa “prejudicar ou causar risco a planos ou operações estratégicos das Forças Armadas”.
O outro, o VIII, trata de divulgação que possa “comprometer atividades de inteligência, bem como de investigação ou fiscalização em andamento, relacionadas com a prevenção ou repressão de infrações.”
Embora os militares se neguem a fornecer informações sobre o software, o próprio Gabinete de Intervenção no Rio de Janeiro confirmou à Folha a compra das ferramentas e repasse às Forças Armadas.
“Nesse contexto, viaturas blindadas de uso militar e softwares de inteligência ficaram sob a propriedade das Forças Armadas, mas com a possibilidade de utilização em prol dos órgãos de segurança pública do Rio de Janeiro mediante necessidade e acordo com a União, caso fosse de interesse do governo do estado do Rio de Janeiro”, disse em nota enviada na quarta (18).
Com o orçamento turbinado, o Gabinete da Intervenção comprou o sistema da empresa Verint Systems, grupo israelense que tinha a fabricante do First Mile sob seu domínio.
A intervenção federal pagou quase R$ 40 milhões para o grupo israelense que possui o software. Não se sabe, porém, se o valor foi gasto somente com a aquisição desse programa ou se outros sistemas estavam inclusos.
Apesar de a compra ter sido realizada no âmbito da intervenção, o software não foi utilizado somente para o combate ao crime organizado no Rio de Janeiro. Ele ficou sob a administração do Exército.
Outras ferramentas do tipo também são utilizadas pelo Comando de Defesa Cibernética. Em 2021, por exemplo, o Exército comprou a ferramenta Cellebrite, que permite a extração de dados de telefones celulares.
Não houve explicação também sobre como esses sistemas são utilizados no Exército.
A intervenção teve como responsável o general Walter Braga Netto, ministro da Casa Civil e da Defesa no governo de Jair Bolsonaro (PL) e vice em sua chapa na eleição presidencial em 2022.
Cotado como candidato do PL de Bolsonaro para Prefeitura do Rio em 2024, Braga Netto é investigado por desvios em contratos da Intervenção Federal no Rio de Janeiro e teve o sigilo telemático quebrado pela PF.
Nesse caso, o centro da investigação é a atuação de empresas de militares na intermediação de contratações da Intervenção Federal do Rio.
Segundo a PF, um deles, o general da reserva Paulo Roberto Corrêa Assis, 81, vendeu influência sobre Jair Bolsonaro, Hamilton Mourão e Braga Netto para tentar destravar a contratação milionária de coletes balísticos.
Já o coronel Robson Queiroz, subordinado por mais de dois anos ao general Walter Braga Netto, recebeu R$ 25 mil da empresa investigada sob suspeita de corrupção nos contratos da Intervenção no Rio.
Queiroz foi nomeado em dezembro de 2016 para o Comando Militar do Leste a pedido de Braga Netto.
Procurado, o ex-ministro de Bolsonaro afirmou em nota que “os citados, apesar de contemporâneos do general Braga Netto, estiveram com ele em momentos esporádicos e em situações rigorosamente republicanas.”
Sobre a suposta fraude apontada pela PF na contratação da Intervenção, o texto diz que o general “não teve qualquer envolvimento direto na decisão final” e que havia “estrutura específica para tratar dos vários processos de aquisição do Gabinete de Intervenção”.
No caso da Abin, a PF também investiga a intermediação do contrato de compra com o dinheiro da Intervenção do Rio por empresa ligadas a militares e seus parentes.
De acordo com a PF, um dos representantes da empresa detentora dos direitos do First Mile é Caio Cesar dos Santos Cruz, filho do general da reserva Santos Cruz —também ex-ministro do governo Bolsonaro.
Caio foi alvo de buscas na operação Última Milha e prestou depoimento à Polícia Federal. Em nota, Santos Cruz afirmou que foi surpreendido. “Nunca houve qualquer ilegalidade no trabalho dele [Caio Cesar]. Ainda não houve acesso ao inquérito. Confiamos nas investigações da Polícia Federal e na Justiça”, disse.
O general Assis não respondeu aos questionamentos da reportagem. Queiroz não foi localizado para comentar o caso.
Fabio Serapião e Cézar Feitoza/Folhapress