Comandante do Exército impediu desmonte de acampamento no QG e chamou general de ‘maluco’

Brasil

“O Dutra é um irresponsável, um maluco. Mandei cancelar a operação.” Foi assim que o general Marco Antônio Freire Gomes contou a integrantes do Alto Comando do Exército (ACE), no dia 29 de dezembro de 2022, a sua decisão de mandar parar a retirada dos manifestantes acampados em frente ao quartel-general do Exército. Freire Gomes explicou aos quatro estrelas a razão de sua ordem: se houvesse um tumulto, ninguém saberia qual seria a reação de Jair Bolsonaro a dois dias da posse de Luiz Inácio Lula da Silva.

O Dutra citado na conversa era o então comandante militar do Planalto, general Gustavo Henrique Dutra de Menezes. Ele dera a ordem para desmontar o acampamento e pedira reforço à PM do Distrito Federal. Mas não avisara Freire Gomes, pois acreditava que o chefe iria barrar a iniciativa. Ao ver o que acontecia na Praça dos Cristais, o comandante do Exército telefonou para Dutra. Estava enfurecido. Chamou-o de “maluco” e de “irresponsável”. Ordenou que todos os agentes fossem retirados dali imediatamente.

O ACE estava em Brasília, pois, no dia seguinte, seria a cerimônia de passagem de comando da Força: Freire Gomes entregaria o bastão ao general Júlio César Arruda, indicado por Lula para comandar o Exército. No dia seguinte, Arruda assumiu o lugar de Freire Gomes sem que Bolsonaro comparecesse à cerimônia. Horas depois, o presidente embarcou para os EUA.

A investigação da Polícia Federal começa agora a jogar luz nos fatos, atos e omissões – do Planalto ao Setor Militar Urbano – que permitiram a manutenção da estrutura de onde saiu a turba que atacou as sedes dos Três Poderes, em 8 de janeiro. Central nessa cronologia, conforme mostraria a delação do tenente-coronel Mauro César Barbosa Cid, seriam os papéis dos comandantes das Forças Armadas. Cid fez os depoimentos dos comandantes das Forças Armadas se tornaram inevitáveis.

Desde o dia 4 de novembro, o general Dutra dizia ao comandante da Força Terrestre que o acampamento devia ser desmobilizado. As conversas foram testemunhadas pelo chefe de gabinete de Freire Gomes, o general Humberto Montenegro Junior, e são do conhecimento de outros oficiais. Em uma das ocasiões, logo depois da publicação da nota conjunta assinada pelos comandantes das Forças Armadas a respeito das manifestações contra a eleição de Lula, Dutra chegou a dizer: “Vai dar merda, comandante”.

Após a intentona do dia 8 de janeiro, foram presas 1.156 pessoas no acampamento em frente ao QG do Exército. Foi dali que haviam saído os vândalos que atacaram a sede da Polícia Federal em 12 de dezembro, dia da diplomação do presidente Lula, bem como os acusados de tentar explodir um caminhão-tanque no aeroporto de Brasília, em 24 de dezembro. O lugar, nas palavras do secretário executivo do Ministério da Justiça, Ricardo Cappelli, era uma “incubadora de planos contra a democracia brasileira”.

O acampamento se formou no dia 30 de outubro, após o anúncio do resultado do segundo turno da eleição, com a vitória de Lula. Queriam um golpe que impedisse o petista de assumir a Presidência e, por isso, pediam a intervenção do Exército. No dia 2 de novembro, o público reunido no lugar foi estimado pela inteligência militar em 30 mil pessoas. No dia 4, começaram a chegar nos órgãos do Distrito Federal ofícios do Comando Militar do Planalto (CMP) pedindo a auxílio para lidar com a aglomeração na Praça dos Cristais.

No dia 10, Freire Gomes e os comandantes da Marinha, almirante Almir Garnier dos Santos, e da Aeronáutica, Carlos Almeida Baptista Junior, terminaram a redação da nota intitulada “Às instituições e ao Povo Brasileiro”, revelada pelo Estadão. A coluna procurou o general Freire Gomes por telefone. Enviou-lhe uma mensagem. Não obteve resposta. O general, dizem seus colegas, está recluso. Também procurou o brigadeiro Baptista Junior e o almirante Garnier, mas não os localizou.

O documento foi publicado no dia 11 e inflamou os acampados, que viram nele uma espécie de aval para o movimento em todo País. Em São Paulo, por exemplo, havia duas concentrações: uma em frente ao Comando Militar do Sudeste, no Ibirapuera, na zona sul, e outra diante da sede do Centro de Preparação de Oficiais da Reserva (CPOR), em Santana, na zona norte.

Após a publicação da nota, o público à frente do QG de Brasília chegou a ser estimado em 100 mil em 15 de novembro. O cenário contava com o silêncio de Bolsonaro. A posse de Lula se aproximava, quando o comandante militar do Planalto começou a sugerir a Freire Gomes que o acampamento fosse desmontado. O comandante respondia que não podia tirar as pessoas sem o presidente se manifestar.

Em depoimentos às CPIs do Distrito Federal e do Congresso sobre o 8 de janeiro, Dutra não mencionou os diálogos com Freire Gomes. Contou que a estratégia do Exército era estrangular o acampamento, tentando impedir as condutas irregulares, como os gatos de energia e o comércio de ambulantes. Tentou ainda restringir o acesso à praça, mas os manifestantes teriam criado uma espécie de “trilha Ho Chi Minh”, uma referência ao abastecimento dos vietcongues feito pelo Laos e pelo Camboja durante a guerra do Vietnã.

No dia 24 de novembro, Freire Gomes participou, segundo a delação do tenente-coronel Cid, de reunião com o presidente Bolsonaro. Nela, Bolsonaro consultou os chefes militares sobre um plano para de um golpe, cancelando as eleições. Garnier, segundo Cid, teria colocado suas tropas à disposição do presidente. Freire Gomes reagiu. Disse – de acordo com a versão de Cid – não ao golpe. Mas não informou ao Ministério Público Federal ou a qualquer outra autoridade o conteúdo da conversa.

Freire Gomes tinha medo da reação do presidente. Se o confrontasse, podia ser destituído do cargo. Ao mesmo tempo, Bolsonaro tinha informações de que alguns dos principais integrantes do ACE eram contrários à aventura golpista. Eram generais com comando de tropa, como Tomás Miguel Ribeiro Paiva (comandante militar do Sudeste), Richard Nunes (comandante militar do Nordeste), Fernando Soares e Silva (comandante militar do Sul) e André Luiz Novaes Miranda (comandante militar do Leste).

O chefe do Estado-Maior, Valério Stumpf, também se mostrava contrário. E disse isso a interlocutores civis desde o tempo em que comandara o Sul. Entre eles estava o professor Denis Rosenfield. Em São Paulo, o general Tomás garantia desde 2021 ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, de quem é amigo, que não haveria golpe. Mas havia entre os generais “uma minoria” disposta a embarcar na ruptura caso Bolsonaro desse a ordem. Parte dela encontrava-se no Comando de Operações Terrestres (Coter).

A desconfiança de Bolsonaro com o Alto Comando – vários de seus membros eram chamados de melancia pelos bolsonaristas – está retratada em uma conversa encontrada pela Polícia Federal no telefone celular de Cid. O coronel Jean Lawand Júnior escreveu ao amigo no dia 2 de dezembro, pouco depois da reunião em que Freire Gomes teria dito não à proposta do golpe:

– Cidão, pelo amor de Deus, cara. Ele (Bolsonaro) dê a ordem, que o povo está com ele, cara. Se os caras (generais) não cumprirem, o problema é deles. Acaba o Exército Brasileiro se esses cara não cumprirem a ordem do… do comandante supremo. Como é que eu vou aceitar uma ordem de um general, que não recebeu, que não aceitou a ordem do comandante? Pelo amor de Deus, Cidão. Pelo amor de Deus, faz alguma coisa, cara. Convence ele a fazer. Ele não pode recuar agora. Ele não tem nada a perder. Ele vai ser preso. O presidente vai ser preso. E pior, na Papuda, cara.

Ao que Cid, respondeu:

— Mas o Pr (Presidente) não pode dar uma ordem se ele não confia no ACE”, disse o tenente-coronel Cid, referindo-se ao Alto Comando do Exército.

É verdade que Bolsonaro ainda tinha caneta na mão. Em seus depoimentos às CPIs, o general Dutra afirmou ainda que só uma ordem judicial poderia retirar da frente dos quartéis os acampamentos. Foi isso que ocorreu em Belo Horizonte, Belém e Caxias do Sul. Justificou assim a inação da Força diante da escalada de atos violentos envolvendo os acampados. O problema é que, se Bolsonaro e Freire Gomes eram um obstáculo até o dia 31 de dezembro, já não eram mais depois de 1.º de janeiro.

A estratégia de estrangular o acampamento – o de Brasília ficou reduzido a centenas de pessoas nos primeiros dias de janeiro – mostrou-se ineficaz diante da chegada de manifestantes dos Estados. Qual seria o papel nessa crise do general Arruda, que comandou o Exército de 30 de dezembro até 21 de janeiro de 2023, quando foi destituído por ter se recusado a cancelar a nomeação do tenente-coronel Cid para o Batalhão de Ações e Comandos?

Arruda deve dar respostas. Subestimou a capacidade de mobilização dos acampados? Esperava uma ordem que não veio? A coluna o procurou. O general disse que depois que passou o comando do Exército e entrou, em definitivo, para a reserva, recebeu vários convites para entrevistas. “Porém, a todos eu tenho dito que, por ora, não me pronunciaria. Ainda permaneço na mesma intenção de não me manifestar.”

A ligação entre os acampamentos, as mensagens encontradas nos telefones celulares apreendidos pela PF, os depoimentos prestados pelos militares sobre a intentona do dia 8 e agora delação do tenente-coronel forneceram elementos e suscitaram novas questões a fim de esclarecer as ligações entre os acampados, as articulações golpistas e as reuniões no Planalto em busca de uma ruptura legal.

Há quem acredite que os atos do dia 8 de janeiro foram uma espécie de plano B para o golpe, em razão da indisposição de parte dos militares para a aventura, ainda que tivessem queixas contra a Justiça Eleitoral, que os levou até a impedir o ministro Alexandre de Moraes de usar a academia de ginástica do CMP. O plano A teria ido por terra, para esses analistas, quando Freire Gomes disse não. Seguiu-se o silêncio presidencial.

Esse silêncio agora é dos ex-comandantes. Freire Gomes e Arruda são Forças Especiais (FE), a mesma coterie que reunia os generais e ex-ministros bolsonaristas Luiz Eduardo Ramos e Eduardo Pazuello. Mas mesmo entre os FEs surgiram divisões. Dutra e Marco Edson Gonçalves Dias também são forças especiais. Entre eles houve ainda quem não se deixou levar pelas algazarras do então presidente, impedindo até que ele fizesse uma motociata dentro de uma unidade militar.

Passados nove meses do governo Lula, os chefes do Grande Mudo da República terão de prestar contas de suas decisões em meio ao temor de indiciamentos na CPI e nos inquéritos da Polícia Federal sobre atos e omissões que já levaram a condenações a 17 anos de cadeia de bagrinhos. Agora parece chegar o momento de se analisar o papel dos chefes que agiram ou se omitiram diante dos planos golpistas.

É comum hoje em dia ouvir de militares que foi um erro a presença dos acampados diante dos quartéis. Após a 2ª Guerra Mundial, a Alemanha Federal se viu espremida entre a herança nazista e a montante comunista. Para que Konrad Adenauer tivesse condições de manter o regime constitucional, foi preciso agir contra os radicalismos em defesa da democracia; mas dentro da lei, sem deixar as mãos livres à polícia.

Raymond Aron definiu bem a situação em Democratie et Totalitarisme: “O regime constitucional é aquele em que, a despeito de tudo, a barreira suprema é um fio de seda – o fio de seda da legalidade. Se o fio de seda da legalidade for rompido, inevitavelmente se perfilará no horizonte o fio da espada.” Desejou-se romper a legalidade no dia 8 de janeiro e substituí-la pela espada. A República, agora, deve usar uma outra espada – a da Justiça – para coser os fios do governo das leis. Mas não se deve esquecer da balança. É nela que o peso das responsabilidades individuais deve ser posto em busca do equilíbrio em cada veredicto.

 

Marcelo Godoy/Estadão Conteúdo

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