Abin viu erros da PM, divisão de pautas e ascensão dos protestos de 2013
BrasilA Abin (Agência Brasileira de Inteligência) monitorou a ascensão dos protestos de junho de 2013, apontou erros da Polícia Militar e de autoridades e alertou que as manifestações se tornariam uma revolta generalizada, rompendo com a pauta original —a redução das tarifas de ônibus.
“O ineditismo desse tipo de protestos no Brasil, tendo em vista o modo como têm sido organizados, torna difícil o dimensionamento das futuras manifestações, inclusive pelos próprios grupos que as convocam”, afirmou o órgão em 18 de junho daquele ano.
A Folha recebeu parte dos relatórios sobre os atos elaborados pela agência após pedido baseado na LAI (Lei de Acesso à Informação). É possível que outros documentos sigam sob sigilo e não tenham sido liberados.
No mesmo relatório, o mais antigo dentro do lote aberto pela Abin, os agentes de inteligência disseram que autoridades erraram ao tentar buscar as lideranças das manifestações.
“A falta de estratégia de governo para lidar com grupo sem representantes legítimos ou lideranças definidas é tida como um obstáculo para gerenciar a situação”, afirma o documento.
Os relatórios apontam que medidas tomadas pela então presidente Dilma Rousseff (PT), entre outras autoridades, foram insuficientes para esvaziar as manifestações.
“O discurso oficial da Presidenta da República, em 21 jun. 2013, em termos gerais, não foi aprovado nas redes sociais. Assim, mantiveram-se confirmadas as mobilizações para os próximos dias em diversas cidades do País”, afirma documento de 24 de junho.
No discurso citado pela Abin, Dilma disse que receberia manifestantes, prometeu debates sobre transporte e saúde e rebateu críticas sobre gastos da Copa do Mundo de 2014. A ex-presidente também criticou atos violentos.
Os agentes de inteligência ainda disseram que a violência da PM de São Paulo contra manifestantes em 13 de junho foi um reflexo da leitura equivocada das autoridade sobre as manifestações.
Para a Abin, a polícia reprimiu “manifestantes, populares e repórteres” por considerar que a mudança de rota do protesto havia quebrado um acordo do MPL (Movimento Passe Livre) com o governo paulista.
“Esse fato [a reação da PM] reflete a concepção equivocada, por parte das autoridades estaduais, de que os interlocutores do MPL representam a maioria dos indivíduos que têm saído às ruas nos recentes atos públicos. Tal percepção não é verdadeira, na medida em que militantes deste movimento já afirmaram publicamente que não têm controle sobre os participantes”, disse o órgão em 18 de junho daquele ano.
Dias mais tarde, a agência afirmou que a “forte repressão desencadeada” pela PM paulista “funcionou como elemento catalisador” dos protestos nacionais.
“A ação policial, que visava desencorajar novas manifestações, resultou em efeito contrário, dado o grau de força dissuasiva utilizada, gerando forte apoio popular aos manifestantes”, disse a Abin em relatório de 21 de junho.
Os documentos mostram que a Abin considerou as manifestações um “marco do novo modo de expressão desses grupos em favor de mais cidadania e melhorias nas condições de vida”.
Nos documentos entregues à reportagem, a agência passa a utilizar a partir de agosto de 2013 o termo “black bloc” para se referir a manifestantes violentos.
“A identidade não deriva de entrada formal em um grupo estabelecido, mas pela participação em ações com modus operandi característico e específico”, disse o órgão no dia 28 daquele mês.
“Realizam-se, portanto, ações black bloc e os seus executores são chamados manifestantes, ou, simplesmente, indivíduos black bloc, que compartilham do entendimento de que protestos pacíficos ou ordeiros, nos limites reconhecidos pelo Estado de Direito, são insuficientes para promover efetivas mudanças sociais”, afirmou ainda a Abin.
A Abin também percebeu a divisão das pautas e entrada de grupos contrários a partidos políticos nas manifestações. Em relatório de 21 de junho, a agência disse que os próprios manifestantes haviam brigado no ato realizado no dia anterior.
“Alguns dos participantes que carregavam bandeiras de partidos políticos foram hostilizados por ativistas, que pregavam o caráter apolítico e eram contra a tentativa de capitalização do movimento por esses entes”, afirmou a agência, mencionando episódios semelhantes no Rio de Janeiro, Porto Alegre, Belo Horizonte e Fortaleza.
“O fenômeno dessas manifestações tem demonstrado consistir-se em movimento de
massa pela quantidade expressiva de adesões; anônimo por inexistir lideranças constituídas;
apartidário pela aversão a qualquer apropriação do discurso dos ativistas por partidos políticos;
dinâmico pela versatilidade das composições que resultam em protestos; e difuso pela variada
pauta de reivindicações que tem sido incluída nas diversas mobilizações”, avaliou a Abin.
No mesmo relatório, a agência apresentou sugestões de medidas para esvaziar os atos: “Ações específicas, no sentido de maior transparência pública e accountability tendem a atuar no sentido do arrefecimento dos protestos”.
Na leitura do órgão de inteligência, jovens de fora da periferia e que não estavam sendo impactados pelo aumento das tarifas eram maioria nos primeiros protestos. “É flagrante a ausência de representantes da população carente”, disse a agência em 18 de junho.
A Abin também notou “frustrações” de trabalhadores que tinham o trajeto para casa interrompido pelas manifestações. Para a agência, esse cenário favorecia que grupos contrários a pautas mais à esquerda se voltassem contra os atos.
“Não foram identificados grupos organizados que manifestem e/ou defendam publicamente esse descontentamento. No entanto, não pode ser descartada uma conjuntura na qual grupos de interesses venham a cooptar parcela dessa população carente contra o movimento conclamado pelo MPL”, disse o órgão.
A Abin tem como atividade principal abastecer a cúpula do governo federal com informações que possam impactar na segurança nacional.
Os relatórios abertos pelo órgão não permitem afirmar que havia agentes de inteligência infiltrados nos protestos. Em 2013, um funcionário da Abin chegou a ser preso durante um ato no Rio, mas a agência disse à época que ele estava de férias.
Em relatório de 26 de junho, sobre “manifestações nacionais — desdobramentos”, a agência disse que os protestos haviam se interiorizado e encolhido. “Registrou-se redução na quantidade de manifestações e no número de participantes de atos públicos. No entanto, tal fato ainda não pode ser considerado uma tendência.”
Os documentos obtidos pela Folha mostram que a agência acompanhou o planejamento e a realização de atos contrários ao governo nos meses seguintes.
A Abin considerou que os protestos haviam perdido fôlego, mas que havia risco permanente de novas mobilizações. “A dinâmica desses movimentos sociais ainda não é suficientemente compreendida a ponto de permitir antecipar comportamentos”, afirmaram os agentes de inteligência em setembro de 2013.
Mateus Vargas/Folhapress