‘Pretas por Salvador’: Conheça o primeiro coletivo a conquistar uma vaga na Câmara
Bahiapor Jade Coelho
A composição da Câmara Municipal de Salvador (CMS) em 2021 vai contar com renovação de 34%, e em meio a esse índice há uma figura e um modo de exercer mandato ainda não testado na cidade: três co-vereadoras vão exercer “uma mandata coletiva” através da eleição do projeto “Pretas por Salvador” (Psol).
Integram o grupo Laina Crisóstomo, Cleide Coutinho e Gleide Davis, que chegam ao Legislativo soteropolitano com pautas que classificam como fundamentais e que se baseiam em quatro eixos principais: “mulheres, negras e negros, LGBTs e direito à cidade”.
As três mulheres pretas reconhecem a responsabilidade e os desafios que enfrentarão a partir de 1º de janeiro. As dificuldades começam pelo próprio exercício do mandato coletivo, já que a legislação não reconhece, do ponto de vista formal, candidaturas em grupo. Elas fizeram a campanha juntas, mas Laina é quem foi cadastrada junto ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e “apareceu na urna”. Eleitas com 3.635 votos, as três co-vereadoras vão dividir o gabinete e decidir juntas as deliberações, projetos, votos e discursos.
“A gente faz isso de forma extraoficial. A ideia é tentar ir desconstruindo esse processo da burocracia que está dentro da Câmara, que é muito conservadora. Trazer para o debate o conceito de mandato coletivo e como atuar”, explicou Laina sobre como pretende colocar em prática essa nova forma de fazer política. A co-vereadora cita exemplos de outros projetos semelhantes, já presentes em outros estados. Um deles é o “Juntas”, em que cinco co-deputadas dividem o gabinete na Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe).
Gleide Davis vê a eleição do grupo como uma conquista da militância. Na visão da co-vereadora, as “Pretas por Salvador” chegam à Casa indo de encontro a uma “conjuntura política extremamente conservadora, que favorece candidaturas brancas, masculinas e hétero”. “E a gente vem com essa candidatura com luta política. Existe impacto na militância. A gente precisa juntar forças para gradativamente conseguir ocupar esse espaço as três. Primeiro decidindo o que será votado e dito, e gradualmente as três ocupando outros espaços”, completou.
Gleide Davis é pesquisadora nas perspectivas de classe e gênero | Foto: Arquivo Pessoal
O projeto “Pretas por Salvador” chega à CMS com o entendimento de que a política é um espaço de coletividades e de representatividade. Laina, Cleide e Gleide acreditam que juntas levam à Câmara ações e posicionamentos mais plurais, que tendem a neutralizar interesses particulares. Diante disso, as co-vereadoras destacam como pontos fortes para a cidade o fato de integrarem diferentes lugares dentro da militância e movimentos sociais, e ainda assim possuírem pontos em comum.
“Buscamos para a chapa companheiras de várias forças políticas, a gente buscou diálogo e foi um grupo com muita cumplicidade e afeto. Eu consigo ver nelas mulheres que me representam”, disse a co-vereadora Cleide Coutinho.
Laina Crisóstomo já foi filiada ao PT e se define como “mulher, preta, lésbica, candomblecista, mulher gorda, mãe, antiproibicionista, e de esquerda”. Ela é envolvida com o movimento estudantil e foi a fundadora do coletivo “Tamo Juntas”, uma organização feminista composta por mulheres profissionais que atuam voluntariamente na assistência multidisciplinar a vítimas de violência e com atuação em diversas regiões do Brasil.
Já Cleide Coutinho é mãe, mora na periferia de Salvador, coordena Movimento Sem Teto, além de participar da direção nacional do Movimento de Luta por Moradia e do Psol Bahia. A co-vereadora traz para o mandato a transformação da dor em luta. Cleide perdeu dois filhos para a violência, e pela vivência desses episódios o mandato “Pretas por Salvador” vai sugerir a criação da “Semana de enfrentamento contra o extermínio da juventude negra” e também um projeto que sugere a reserva de vagas no SUS para tratamento psicológico das mães que perderam filhos para a violência.
Cleide Coutinho é dirigente nacional do Movimento de Luta por Moradia | Foto: Arquivo Pessoal
Aos 28 anos, Gleide Davis é estudante de Serviço Social, nascida e criada na periferia de Salvador. Ela começou na militância através do Sarau do Alto Cabrito, e é engajada em lutas culturais há cinco anos. É administradora das páginas “Feminismo sem Demagogia” e “Todas as Fridas”. A co-vereadora é bisexual, candomblecista, e também milita contra violência policial, pauta despertada pelo assassinato do irmão em 2015, e que ela transformou em objeto de pesquisa acadêmica.
O projeto das co-vereadoras para os próximos quatro anos inclui pautas urgentes, e de médio e longo prazo. O debate de e sobre mulheres é classificado por elas como “estrutural”. Segundo Laina, a pauta prioritária inicialmente será “política de creche”. “Não dá para não pensar nesse início de ano, quando a gente toma posse, a política de creche. O ano vai começar e as mulheres precisam ter autonomia econômica e financeira, liberdade para romper relacionamentos abusivos, e ter onde deixar as crianças. As mulheres nesse momento de pandemia viveram ainda mais um processo de sobrecarga perverso. A gente precisa fortalecer essa perspectiva”, defendeu a “titular” da cadeira.
Sobre a composição de gabinete, o entendimento delas parte da perspectiva de lugares de fala e das bandeiras que cada uma carrega. “Não dá para pensar que dá pra construir ‘uma mandata’ se não for a partir das pessoas. Queremos construir uma bancada diversa, coletiva não só porque nós somos três, mas pela pluralidade de pensamentos”, explicou Laina.
Dentro da Câmara, as psolistas farão oposição ao grupo político no Executivo soteropolitano. Bruno Reis (DEM) foi eleito prefeito de Salvador no domingo (15) e assume o Palácio Thomé de Souza em 1º de janeiro. O grupo do prefeito eleito conta com 31 das 43 cadeiras no Legislativo. Atualmente a oposição é rachada em dois blocos e o Psol se declara independente.
Laina defende a necessidade e importância de “uma frente de esquerda para derrubar o fascismo”. “O fascismo é assassino, genocida. Ele toca os nossos corpos. Eu sou mulher, preta, gorda, sapatão, de candomblé, eu sei exatamente como o fascismo toca no meu corpo, ele invade, mata, oprime, tenta me colocar no armário de volta. A gente precisa muito fazer um debate sobre isso”, argumentou ao admitir estar aberta ao diálogo e a analisar as pautas que possam unir as “Pretas por Salvador” e os demais vereadores de oposição.
“O Brasil inteiro, desde a eleição de Bolsonaro, entendeu que a gente precisa fazer frente única de esquerda, e eu acho que a gente precisa dialogar. Não tenho como dar uma resposta hoje, a gente precisa assumir. Mas eu acho que a o que a gente precisa fazer é um processo de união da esquerda para derrubar o fascismo”, argumentou a co-vereadora que apareceu nas urnas. Ela ainda ressalta a necessidade dos partidos de esquerda fazerem críticas e autocríticas.
Laina Crisóstomo é advogada, feminista e fundadora do coletivo “Tamo Juntas” | Foto: Reprodução/Instagram