Em 4 anos, Trump destrói tradições e deixa marca conservadora no Judiciário
Internacionaispor Folhapress
Há oito meses, a candidatura de Donald Trump à reeleição era considerada imbatível: a economia estava pujante, o desemprego, no menor nível em 50 anos, e 4,5 milhões haviam deixado a pobreza.
Mas o legado de Trump na economia foi atropelado pela Covid-19, que infectou 9,2 milhões, matou ao menos 231 mil pessoas nos EUA e demoliu o maior trunfo eleitoral do republicano.
Assim, o desemprego saiu de 3,5% em fevereiro e chegou a 7,9% em setembro. O PIB encolheu 32,8% no segundo trimestre, e 8 milhões de americanos entraram na faixa de pobreza desde maio.
Nos últimos meses, houve melhora nos índices, mas o país ainda está longe de recuperar todos os 22 milhões de postos de trabalho perdidos durante a pandemia.
Enquanto a economia ia bem, muitos eleitores independentes ou moderados estavam dispostos a tampar o nariz para os problemas de Trump e votar no presidente. Agora, na medida em que a retomada demora a engrenar, ficam mais evidentes os aspectos negativos dos quatro anos de mandato do republicano.
A política de imigração, que mobiliza a base mais ideológica de Trump, deixou uma herança negativa.
Logo após assumir, em 2017, o líder americano vetou a entrada de pessoas vindas de sete países de maioria muçulmana. A medida foi contestada judicialmente, mas, após idas e vindas, mantiveram-se algumas restrições. O republicano também reduziu o teto anual de refugiados que os EUA acolhem -de 110 mil no ano fiscal de 2017 para 18 mil, mínimo histórico, no atual.
Uma das bandeiras de sua campanha -“um lindo e enorme” muro na fronteira com o México para evitar a entrada de “criminosos e estupradores”, segundo Trump– foi um fracasso. Seu governo construiu apenas 600 km de barreira, boa parte dos quais apenas reparos em trechos já existentes.
Nada disso deteve ondas de imigrantes fugindo da violência e da pobreza na América Central e no México -o número de detidos na fronteira em 2019 foi o maior dos últimos 12 anos.
A política de separar crianças migrantes de seus pais e aprisioná-las em abrigos se tornou uma mancha indelével na reputação americana. Na semana passada, relatório do inspetor-geral do Departamento de Saúde e Serviços Humanos revelou que o governo ainda não conseguiu localizar os pais de 545 crianças detidas no início do mandato de Trump.
No meio ambiente, o republicano, que chegou a chamar o aquecimento global de farsa inventada pela China, minimizou os efeitos das mudanças climáticas e retirou os EUA, segundo maior emissor de gases de efeito estufa, atrás apenas do país asiático, do Acordo do Clima de Paris. O candidato democrata, Joe Biden, prometeu recolocar os americanos no pacto caso eleito.
Para beneficiar produtores de petróleo, carvão e gás, Trump também desmantelou regulações que ajudavam na redução de emissões. Mas nem assim conseguiu impulsionar a decadente indústria do carvão que, pela primeira vez, foi ultrapassada pela de energia renovável.
No campos das relações raciais, os Estados Unidos se viram diante de um líder que fez diversos comentários racistas e deixou de condenar supremacistas brancos. Logo depois da erupção dos protestos contra a violência policial desencadeados pelo assassinato do homem negro George Floyd por um policial branco, em maio, Trump afirmou que o movimento Black Lives Matter era um “símbolo de ódio”.
Ele não usou as mesmas palavras para condenar grupos extremistas e racistas como os Proud Boys.
Em 2017, quando centenas de extremistas se reuniram em Charlottesville para protestar contra a remoção de uma estátua que homenageava Robert E. Lee, general confederado da Guerra Civil americana e defensor da escravidão, Trump não repreendeu os racistas. Igualou extremistas aos manifestantes antirracismo, dizendo que “havia pessoas muito boas dos dois lados”.
Segundo levantamento anual do Southern Poverty Law Center, entidade que monitora o extremismo no país, os EUA tinham 155 grupos de nacionalistas brancos em 2019 –um salto de 55% em relação a 2017.
O republicano costuma dizer que fez “mais pelos afro-americanos do que qualquer presidente, a não ser, talvez, Abraham Lincoln”, que aboliu a escravidão. Aponta para a queda do desemprego entre a minoria e para a reforma criminal, que, de fato, é importante para reduzir o encarceramento em massa de negros.
Para alguém que se elegeu com a promessa de “drenar o pântano” da corrupção, Trump se sobressaiu por ações eticamente questionáveis. O governo gastou milhares de dólares em hotéis da marca Trump em viagens da primeira família, burlou regras contra nepotismo ao permitir que seu genro, Jared Kushner, fosse nomeado para um cargo no governo e contratou diversos lobistas.
Também se tornou o terceiro presidente da história americana a sofrer um processo de impeachment, acusado de abuso de poder por ter pressionado o líder da Ucrânia a investigar Joe Biden e, depois, de ter obstruído as investigações quando fora descoberto. Num processo conflituoso, que realçou a polarização partidária no país, viu o Senado, de maioria republicana, livrá-lo das acusações.
Na área da saúde, Trump tenta enfraquecer a legislação implementada por Barack Obama para aumentar o acesso a assistência médica, já que os republicanos consideram o Obamacare, como a Lei de Tratamento Acessível é conhecida, uma política socialista.
No dia 10 de novembro, uma semana após o pleito, a Suprema Corte analisará uma ação para derrubar a lei. Até agora, o presidente não apresentou um plano concreto para substituir o programa do antecessor e se limita a prometer algo “muito melhor e mais barato”, o que seria “uma grande vitória para os EUA”.
Se não houver um substituto, cerca de 21 milhões de americanos hoje cobertos pelo Medicaid –que atende quem tem deficiência ou mais de 65 anos– ou que recebem subsídios para pagar convênios médicos deixariam de ter plano de saúde.
Além disso, os cerca de 133 milhões de americanos com doenças preexistentes poderiam perder seus planos ou ver o preço deles explodir, de acordo com levantamento do Congressional Research Service.
Segundo Allan Lichtman, professor de história americana da American University, não foi apenas a Covid-19 que quebrou a economia mas também “a resposta desastrada de Trump para a Covid-19”.
“A pandemia, descontrolada, produziu uma recessão e contribuiu para instabilidade social”, diz ele.
O professor é o responsável pelo modelo “Chaves para a Presidência”, que previu acertadamente o resultado das eleições presidenciais americanas desde 1984 –inclusive a de Trump. Segundo o modelo, que se baseia em um sistema histórico para as previsões, o presidente não vai se reeleger.
No cenário global, os EUA encolheram de forma vertiginosa. Trump rompeu com a política externa em vigor desde o fim da Segunda Guerra, segundo a qual o país deveria se envolver em problemas mundiais, mesmo aqueles que não os afetasse diretamente. Em contrapartida, ganhava influência para determinar as regras globais, diz Fernanda Magnotta, coordenadora do programa de relações internacionais da Faap.
Sob Trump, os EUA deixaram acordos de redução de armas e o pacto nuclear com o Irã, anunciaram a saída da Organização Mundial da Saúde, questionaram a Otan e hostilizaram aliados como a Alemanha.
“Para o bem ou para o mal, não se pode dizer que Trump cometeu estelionato eleitoral”, afirma Magnotta.
Segundo a professora, o republicano conduziu a política externa de forma “contábil”, pensando apenas em retornos rápidos e exigindo concessões imediatas para suas demandas. Isoladamente, cada uma dessas ações pode até dar “lucro” no curto prazo. “Mas, com o tempo, foram esvaziando o poder dos EUA no cenário global e deixando um vácuo de liderança –ainda não ocupado pela China.”
Pesquisa de setembro do Pew Research Center mostra o derretimento do prestígio dos EUA no mundo: a porcentagem de pessoas que veem o país de forma favorável é a menor em 20 anos –41% no Reino Unido, 31% na França e 26% na Alemanha. O Brasil não figurava entre os países pesquisados.
Trump tomou a decisão inaudita de reconhecer Jerusalém como a capital de Israel e mudar a embaixada americana de Tel Aviv para a cidade. O movimento se choca com a reivindicação dos palestinos de estabelecer a capital de um futuro Estado palestino em Jerusalém Oriental, o que levou o presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas, a cortar todos os contatos diplomáticos com Washington.
Mesmo tendo perdido a legitimidade para ser mediador das negociações, Trump lançou um plano de paz para palestinos e israelenses. Quando os palestinos se negaram a se sentar à mesa, cortou a ajuda financeira de mais de US$ 500 milhões que concedia para o funcionamento de hospitais e escolas.
O presidente cumpriu, ao menos em parte, a promessa de tirar os EUA das “guerras intermináveis”, ao reduzir de forma significativa o número de soldados americanos em Afeganistão, Síria e Iraque.
E, recentemente, conseguiu progressos no Oriente Médio. Os Emirados Árabes Unidos, o Bahrein e o Sudão assinaram um acordo para normalizar relações diplomáticas com Israel, juntando-se a Egito e Jordânia entre os países árabes que reconhecem o Estado de Israel.
A mediação desse acordos serviu também para tentar enfraquecer o Irã, rival histórico da Arábia Saudita e de monarquias do Golfo. Trump abandonou, em maio de 2018, o acordo nuclear assinado pelos EUA, ainda sob Obama, com os persas, segundo o qual Teerã se comprometia a limitar seu programa nuclear a fins pacíficos, em troca de relaxamento de sanções econômicas.
O republicano diz que o trato era leniente com o Irã e prometeu fechar um muito melhor. Até agora, nada.
No campo econômico, o republicano abandonou a parceria Trans-Pacífico, acordo comercial entre 12 países assinada por Obama, e renegociou o Nafta, tratado com México e Canadá, classificado por Trump como “talvez o pior acordo comercial jamais feito”.
O substituto não mudou muita coisa, mas conseguiu endurecer regras trabalhistas e de conteúdo nacional para automóveis –para evitar terceirização para a China, por exemplo–, reivindicações americanas.
O mais impactante foi, de longe, a guerra comercial e tecnológica com a China. Trump impôs tarifas sobre US$ 550 bilhões em produtos chineses, e os EUA sofreram retaliação com taxas sobre US$ 185 bilhões em produtos americanos. Exportadores de soja americanos e parte da indústria sofreram as consequências, e a guerra não trouxe indústrias de volta, como Trump prometera.
Os dois países chegaram em janeiro a um acordo preliminar, no qual a China se comprometia a aumentar, em dois anos, as compras de produtos americanos no valor de US$ 200 bilhões.
Mas o país asiático está longe de cumprir a promessa. Os EUA continuam a registrar déficit comercial com a China, e o acordo fechado com Xi Jinping não toca nas questões mais complicadas, como exigência de transferência de tecnologia de empresas americanas para se instalarem na China, subsídios para empresas estatais e roubo de propriedade intelectual.
No front tecnológico, os EUA impuseram inúmeras sanções contra a Huawei, fornecedora chinesa de infraestrutura de 5G, e ameaçaram banir aplicativos como TikTok e WeChat. As relações entre os países pioraram durante a pandemia, e os líderes dos dois países não se falam desde março.
Se críticos destacam aspectos negativos do mandato, apoiadores de Trump têm o que comemorar. O republicano conseguiu estabelecer uma guinada conservadora no Judiciário –nomeou 217 magistrados federais, além de três juízes da Suprema corte, que agora pende de forma acentuada para a direita.
Isso pode ter impacto em questões caras à base do republicano, como direito ao aborto e casamento gay. Mesmo que Trump perca, ele deixará essa marca no país, celebrada por conservadores.
Já o futuro do Partido Republicano, no caso de derrota de Trump, é mais incerto. Com o presidente, a legenda se moveu cada vez mais para longe dos princípios conservadores de Margareth Thatcher e Ronald Reagan: política fiscal ortodoxa (dívida atingiu recorde) política externa que pregava a expansão da democracia no mundo (o líder americano foi hostil a aliados da Otan e se aproximou de autocratas como o russo Vladimir Putin, o húngaro Viktor Orbán e o turco Recep Tayyip Erdogan) e livre comércio (é um dos presidentes mais protecionistas da história).
Na realidade, essa transformação começou antes de Trump, com a ascensão do movimento populista Tea Party a partir de 2009. Mas, com o atual presidente, saiu das margens e consumiu o partido.
É fato que Trump capturou o espírito do tempo e percebeu que a ortodoxia na economia e no livre comércio alienava uma parcela importante de seu eleitorado, que estava perdendo seus empregos e suas indústrias devido à China e à globalização
Conciliar os valores fundamentais do Partido Republicano –que não incluem simpatia a supremacistas brancos nem hostilização de aliados– com a preocupação com os empregos e a classe média, e não apenas com Wall Street e as elites, será um desafio para os republicanos pós-Trump.