Crise dos enfermeiros marca debate eleitoral sobre ‘SUS do Reino Unido’
Internacionaispor Ana Estela de Sousa Pinto | Folhapress
Faltam 43 mil enfermeiros na saúde pública da Inglaterra, ou metade da ocupação do estádio de Wembley, a casa nacional do futebol inglês.
A situação deve ficar ainda pior, segundo o Royal College de Enfermagem, pois o número de estudantes caiu 25% desde 2016, o que tirará 13 mil profissionais dentre os potencialmente formados nos próximos anos.
Face mais aguda da crise por que passa o sistema de saúde público do Reino Unido (NHS), os enfermeiros viraram tema da campanha eleitoral em setembro, quando o premiê Boris Johnson foi confrontado em frente às câmeras pelo pai de uma garota doente no hospital londrino Whipps Cross, um bairro de condições econômicas desiguais e demografia heterogênea (52% brancos, 21% asiáticos, 17% negros e o restante mestiços).
“Vocês destruíram o NHS e agora vêm aqui apenas para fazer propaganda eleitoral”, reclamou o pai, abrindo um debate sobre saúde pública.
No hospital, a uma hora de ônibus a nordeste do centro de Londres, funcionários repetiram à Folha o que haviam dito à imprensa britânica na ocasião: a falta de profissionais e de equipamentos em uso é rotineira, e a espera para tomar analgésicos ou antibióticos pode chegar a 8 horas por falta de enfermeiros que os administrem.
O efeito não chegava a ser visível nem nos corredores vazios e tranquilos do hospital nem no pronto-socorro, na tarde da última quinta-feira(5). Estavam livres um quarto das cadeiras para espera e um dos guichês de triagem estava vazio.
Mas os números do governo sobre o NHS mostram que, de fato, pacientes têm esperado mais e recebido menos atendimento em todo o país.
A meta britânica é de no máximo quatro horas para atender quem chega ao setor de emergência, mas, em novembro, 1 em cada 6 esperou mais que isso, um aumento de 63,4% na comparação com o ano passado.
No caso dos tratamentos de rotina, estima-se que, só na Inglaterra, 4,5 milhões de pessoas estejam na fila.
No total, faltam 100 mil profissionais no sistema médico britânico, ou seja, 1 em cada 12 vagas está aberta. O número seria suficiente para operar 10 hospitais.
A exposição de fraturas numa das instituições mais valorizadas pelos britânicos (considerado um modelo internacional, o NHS, universal e gratuito, inspirou o desenho do brasileiro SUS) acendeu a luz amarela para os candidatos que disputam na próxima quinta-feira (12) as eleições britânicas.
Antecipado por Boris, que segundo as pesquisas é favorito para se manter no cargo, o pleito ocorre em pleno inverno, estação em que aumentam a demanda pelos hospitais e o potencial de crise.
O primeiro a fazer barulho com o tema foi o líder trabalhista, Jeremy Corbyn, cujo partido tem raízes nas classes mais pobres e que coloca os serviços públicos tradicionalmente em sua pauta.
Corbyn acusa a política de austeridade dos governos do Partido Conservador, do qual Boris é líder, de ter sucateado não só a saúde, mas a polícia, o sistema prisional e a educação pública.
Sob os conservadores, os gastos em saúde pública desaceleraram. De uma média de 6% de alta ao ano sob os governos trabalhistas, de 1997 a 2010, passaram a subir apenas 1% ao ano com os conservadores, de 2010 a 2015.
É menos que os 2% de aumento anual que seria necessário, segundo especialistas, para absorver aumentos de custo não apenas com o crescimento da população mas também com seu envelhecimento (tratamentos de idosos são mais caros) e com o avanço tecnológico.
Na berlinda, o governo conservador buscou a solução no brexit: Boris afirma que poderá usar recursos que hoje são destinados à União Europeia para elevar os gastos em 3,4% ao ano, em média, entre 2019 e 2024.
Já os trabalhistas propõem alta de 3,9% –parte financiada com alta de impostos.
Mas o problema não é exatamente a falta de recursos (o sistema consome um terço dos gastos públicos do Reino Unido e foi de 9,6% do PIB em 2018), mas a sua irregularidade, diz o diretor do Centro de Análise de Políticas Públicas da London School of Economics, Tony Hockley,
O que tem ocorrido, argumenta ele, é que a saúde pública recebe recursos a mais quando se aproximam as eleições –o que leva a ineficiência e desperdícios– e verba de menos nos contraciclos, o que provoca crises tanto médicas quanto políticas.
Hockley, que foi conselheiro do departamento de saúde britânico, defende estabilizar esses gastos em níveis semelhantes aos dos países europeus mais desenvolvidos (veja gráfico ao lado), mas num desenho de longo prazo, assinado por todos os partidos, “para impedir que cada nova iniciativa seja paralisada a cada nova eleição e substituída por outra de curto alcance”.
Para além dos gastos, Corbyn também recorreu às enfermeiras em seu ataque ao atual premiê.
O número de estudantes de enfermagem caiu porque, em 2016, o governo conservador cortou bolsas de estudo nessa área. E, segundo Corbyn, o acordo para o brexit costurado por Boris vai agravar a falta de mão de obra.
Imigrantes são parte significativa da força de trabalho nos cuidados de saúde, e, com a saída prevista do Reino Unido da União Europeia, a entrada de estrangeiros será dificultada (além de enfermeiros, estima-se que faltam 10 mil médicos no NHS).
Como resposta, o primeiro-ministro afirmou que vai retomar as bolsas de estudo e criar vistos especiais para agilizar a entrada de imigrantes dessas profissões.
O principal conselheiro político de Boris Johnson, Dominic Cummings, também resolveu reforçar a comunicação sobre saúde, área considerada muito sensível: políticos conservadores consolidaram a imagem de se importarem pouco com o NHS, considerado um patrimônio pelos cidadãos ingleses.
Foi de Cummings a orientação para que o primeiro-ministro passasse a visitar mais hospitais (na semana passada, o número já superava uma dúzia) e falasse mais do assunto (de cada seis postagens em rede social, uma passou a se referir ao NHS).
Considerado um gênio do “microtargeting”, Cummings também criou um sistema para que cada eleitor receba pela internet mensagens sobre os planos especificamente para o hospital da sua vizinhança.