Parlamentares esquecem de seus Estados e mandam emendas ao Orçamento de 2024 a outro Estado; Bahia está na lista
Um grupo de deputados e senadores tem se esquecido de seus redutos eleitorais na hora de destinar verbas do Orçamento por meio de emendas. A conduta, que se repete nos últimos anos, acaba prejudicando as regiões em que os políticos foram votados. Embora não seja ilegal, a prática faz com que as cidades do colégio eleitoral do parlamentar deixem de receber investimentos do governo federal para que o dinheiro seja destinado a local onde o parlamentar não atua.
Levantamento feito pelo Estadão mostra que no Orçamento de 2024 deputados e senadores enviaram R$ 412 milhões para entidades, prefeituras e governos estaduais fora dos Estados onde foram eleitos. Dois deles chamam a atenção. O deputado Vinícius Gurgel (PL-AP) indicou 77% da verba que tinha disponível para emendas ao Orçamento para fora do Amapá. Já o deputado Vicentinho (PT-SP) mandou a maior parte das emendas para São Paulo mesmo, mas uma parte da verba separou para três prefeituras nordestinas, regiões onde ele diz ter parentes. Ambos sustentam que a escolha que fizeram não é vedada por lei.
Dos R$ 412 milhões destinados a Estados fora da base do parlamentar, R$ 73 milhões foram para prefeituras; e R$ 15,2 milhões encaminhados por meio de transferências especiais, as chamadas “emendas pix”, que garantem repasse direito e dificultam a fiscalização dos gastos.
Emendas parlamentares são modificações feitas por congressistas no texto da Lei Orçamentária Anual (LOA) para destinar dinheiro público aos locais onde têm votos. Geralmente, são usadas para financiar serviços (como saúde); ou para pequenas obras. As emendas podem ser individuais; das bancadas estaduais ou das comissões permanentes.
No caso das emendas individuais, o valor este ano é de R$ 37,8 milhões por deputado e R$ 69,6 milhões por senador. Desde 2015, estas emendas são impositivas – ou seja, o Poder Executivo é obrigado a executá-las, até um limite. Em 2024, este limite é de cerca de R$ 21,8 bilhões, do total de R$ 25 bilhões de emendas individuais.
Parte das emendas enviadas para outros Estados foi destinada a órgãos públicos com atuação nacional, como a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) ou para a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), além de universidades federais. Há também recursos encaminhados por deputados de todo o País para hospitais de referência, com atuação nacional. O Hospital do Câncer de Barretos (SP) é um exemplo.
No entanto, em 2024, cerca de R$ 234 milhões não se encaixam nessas hipóteses. É dinheiro que foi para prefeituras ou governos de outros Estados, ou ainda para ONGs sediadas em outra unidade da federação – ainda que sob a justificativa de executar projetos no Estado do parlamentar. Esses R$ 234 milhões foram enviados por 138 deputados e senadores, de 14 partidos, que se elegeram por 24 Estados e pelo Distrito Federal. Entre os partidos, o mais expressivo é o PL (R$ 86,4 milhões), seguido pelo PT, com menos da metade (R$ 42,8 milhões). A bancada Estadual que mais aderiu à prática foi o DF (R$ 50,6 milhões, a maior parte para municípios do Entorno), seguida de Rio (R$ 33,8 milhões), São Paulo (R$ 26,3 milhões) e Amapá (R$ 25,2 milhões).
Deputado do Amapá mandou 77% para outros Estados
Em 2024, o campeão do envio de emendas para fora do Estado foi o deputado Vinícius Gurgel (PL-AP). O Amapá tem o terceiro pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do país, mas mesmo assim o parlamentar decidiu priorizar outros Estados brasileiros. 77,2% das emendas individuais dele foram para prefeituras de fora do Estado, ou R$ 29,2 milhões. As emendas foram para quatro cidades do Ceará, uma no Maranhão e outras quatro na Bahia.
Ao destinar os recursos, Gurgel não deixou claros os critérios usados para escolher aquelas cidades específicas. Ao fazer uma “emenda pix” de R$ 4 milhões para o município de Aquiraz (CE), o deputado escreveu apenas que “essa emenda tem o objetivo de incrementar os recursos do município de Aquiraz para o desenvolvimento da cidade”. Gurgel também foi lacônico ao justificar o envio de R$ 5 milhões para Pinheiro (MA): “Esta emenda tem o objetivo de contribuir com a manutenção da qualidade da oferta de serviços de saúde para a população do município de Pinheiro”.
Para Esplanada (BA), Vinicius Gurgel mandou R$ 4 milhões. A cidade está a 1.950 km em linha reta de Macapá (AP), cidade natal do parlamentar. O prefeito de Esplanada, Nandinho da Serraria, é hoje filiado ao PT – partido que está na outra ponta do espectro ideológico em relação ao PL do deputado amapaense. Nas redes sociais de Nandinho, não há nem sombra de Gurgel. Ao apresentar a emenda, Gurgel não explicou porque estava mandando os recursos para Esplanada. “Esta emenda tem o objetivo de contribuir com a manutenção da qualidade da oferta de serviços de saúde para a população do município de Esplanada”, diz a justificativa da emenda.
Ao Estadão, Nandinho da Serraria disse que não conhece Gurgel e que a emenda ainda não foi paga ainda. O prefeito disse que deputados de diferentes Estados às vezes fazem “trocas” de emendas entre si. “Geralmente, os deputados… uns pedem para os outros indicar para o município, mas… só se foi através de um outro deputado nosso aí. Geralmente eles fazem isso aí”, diz o prefeito.
Procurado, Gurgel disse que seu trabalho na Câmara é representar “toda a população brasileira”. “Além de ser eleito para ser representante do Amapá na Câmara dos Deputados, ele também representa toda população brasileira. Assim como trabalha pelo Amapá, Vinícius Gurgel ressalta ainda que é preciso promover o desenvolvimento econômico e social de todas as regiões do país”, disse ele, por meio de sua assessoria de imprensa.
Vicentinho manda recursos para terra de parentes no Nordeste
O deputado Vicentinho (PT-SP) destinou a maior parte de suas emendas para São Paulo, mas reservou R$ 900 mil para três prefeituras nordestinas. Foram agraciadas São Francisco (PB), Carnaúba dos Dantas (RN) e Macaíba (RN), esta última na zona metropolitana de Natal. Ele também mandou R$ 1,5 milhão para ONGs sediadas em outros estados, como a Associação Continental Grito dos Excluídos (RS), que recebeu R$ 200 mil. Para SP, foram R$ 35,1 milhões, equivalente a 93,6% das emendas que apresentou.
O prefeito de Macaíba, Emídio Jr., é do PL. No Instagram, Emídio explica que Vicentinho é “norte-rio-grandense da gema, potiguar nascido em Campo Redondo, criado em Acari e que viveu um período em Macaíba”. Vicentinho diz que buscou atender às necessidades do município, onde tem parentes. “Mas as pessoas podem perguntar: ‘Vicentinho, você pode fazer isso, sendo deputado por São Paulo?’ Posso. Isso é legal. Não tem nenhum problema”, diz ele, no vídeo.
Consultor de Orçamento aposentado da Câmara dos Deputados, Hélio Tollini diz que é preciso separar os casos legítimos de envio de emendas para fora do Estado daqueles em que há indício de atividade ilícita. O especialista diz ainda que há casos de congressistas que têm interesses eleitorais em outro Estado além daquele em que foram eleitas, a justificar o envio de emendas para fora. É o caso daqueles que têm origem e construíram carreira em outro Estado, diferente daquele em que se elegeram. “Tem que filtrar também esses grandes centros, como o Hospital do Câncer de Barretos”, diz ele.
O cientista político Sérgio Praça especula sobre possíveis explicações para o fenômeno. “Pode ser uma coisa partidária ou ideológica. Digamos que você seja um deputado do PT e um prefeito do seu partido em outro Estado lhe peça dinheiro para o município. Pode ser também uma troca com outros parlamentares – você manda um recurso para a Bahia e outro deputado do PL envia dinheiro para o Amapá (…)”, diz ele, que é professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV). “Mas, é evidente que a CGU (Controladoria-Geral da União) e o TCU (Tribunal de Contas da União) deveriam dar uma olhada nisso”, diz ele.
O Top 5: Gurgel, Helio Negão, Fraga e Quaquá
Completam o “top 5″ dos congressistas que mais mandaram recursos para fora de seus Estados dois amigos do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e um petista.
Helio Lopes (PL-RJ), também conhecido como Hélio Negão, mandou R$ 10,8 milhões para fora do Rio de Janeiro, principalmente para ONGs sediadas em outros Estados. R$ 1,78 milhão foram destinados à uma organização chamada Instituto Realize. Sem site ou redes sociais, a ONG está registrada num imóvel simples no bairro Casa Verde, na Zona Norte de São Paulo (SP), e já foi presidida por uma mulher beneficiária de programas sociais, como o Bolsa Família. Hoje, a ONG é comandada por um ex-militar e, no endereço onde ela funcionaria, há uma loja chamada “Rainhas do Cabaré – artigos religiosos”.
Amigo de Bolsonaro, Lopes também mandou R$ 1 milhão em “emenda pix” para as prefeituras de Viçosa (MG) e São Paulo (SP) – R$ 500 mil para cada. “Transferências especiais para atendimento de demandas urgentes de estados e municípios”, diz a justificativa do deputado na emenda, sem maiores detalhes. A reportagem do Estadão procurou o congressista fluminense, mas não houve resposta.
Alberto Fraga (PL-DF), que também é próximo ao ex-presidente, enviou R$ 10 milhões para uma Organização Social (OS) do Rio Grande do Sul, a IBSaúde, que gerencia hospitais em Porto Alegre e em Canoas (RS). Na justificativa da emenda, Fraga diz que serão prestados serviços no Distrito Federal, embora a OS não tenha unidades no DF. A reportagem do Estadão questionou o IBSaúde sobre os projetos da organização fora do Rio Grande do Sul, mas não houve resposta.
Fraga mandou ainda R$ 5,8 milhões para Santo Antônio do Descoberto (GO). Embora seja se outro Estado, o município pobre está no entorno de Brasília. Por isso, a reportagem não considerou este tipo de emenda ao elaborar o “ranking”. “Escreva o que você quiser, mas sempre botei e sempre vou botar algumas emendas para a Ride (Região Integrada de Desenvolvimento Econômico)”, disse Fraga.
Em quarto lugar no “top 5″, Washington Quaquá (PT-RJ) mandou R$ 8 milhões para a mesma IBSaúde escolhida por Fraga. Na justificativa da emenda, o deputado petista disse que os recursos serão usados em projetos no Rio, mesmo que a entidade não tenha bases em território fluminense. “O deputado destinou recursos para uma ONG sem fins lucrativos, com sede em outro estado, mas que desenvolve projetos em todo o Brasil, conforme manda a Lei. Os recursos serão todos destinados a projetos no Estado Rio de Janeiro”, disse Quaquá, por meio da assessoria.
Perguntada sobre as atividades a serem desenvolvidas, a assessoria do deputado mencionou ações que não estão na justificativa da emenda apresentada pelo congressista, como atendimento odontológico e oftalmológico em favelas. “Os projetos estão sendo detalhados no InvestSUS e serão analisados pelo Ministério da Saúde”, disse a assessoria.
Fecha a lista a senadora Soraya Thronicke (Pode-MS). Ela enviou R$ 8 milhões para uma ONG sediada no Rio de Janeiro, o Instituto de Desenvolvimento Socioambiental (IDS). A entidade trabalha com iniciativas de agricultura familiar. Desde 2021, já captou R$ 27 milhões com o governo federal, sendo parte por meio de emendas parlamentares. Na justificativa, Thronicke diz que o objetivo é ajudar agricultores familiares na “profissionalização e a comercialização de suas produções”. Por meio da assessoria, a senadora disse que serão realizadas feiras do produtor em cidades do Mato Grosso do Sul. No ano passado, a mesma entidade realizou a feira do produtor na cidade de Naviraí (MS).
André Shalders/Estadão Conteúdo